O cinema autoral do diretor norte-americano Jim Jarmusch
parte, pelo menos, de dois preceitos – um temático, em que as suas tramas giram
em torno de personagens outsiders, que parece trafegar em um universo fora do
tempo e do espaço; e outro estético, em que a narrativa se baseia em recursos
minimalistas, valorizando silêncios expressivos e atmosferas de certa distância
emocional e ironia amarga. “Paterson” (2016) é um exemplar enfático do modus
operandi de Jarmusch, ainda que revele em determinadas passagens uma queda por
um certo convencionalismo. A poesia baseada no cotidiano é o grande tema da
trama, e o estilo peculiar e rigoroso do cineasta cai como uma luva dentro
dessa concepção de conteúdo. A grande fonte de inspiração do protagonista
Paterson (Adam Driver), poeta e motorista de ônibus, vem da discreta e acurada
observação que faz dos pequenos gestos e dramas que ocorrem à sua volta na sua
rotina profissional e pessoal, com direito, por vezes, ao que o inesperado e o
insólito entrem em cena. Roteiro e encenação demonstram uma bela síntese de
sensibilidade e precisão na maneira como delineiam as nuances de seus
desdobramentos – vários detalhes da vida de Paterson são apenas sugeridos,
principalmente no que diz respeito ao seu passado e às suas motivações, e a
grande sacada para a forte empatia do personagem e do próprio filme está
justamente nessas “pontas soltas” da trama. O segredo da perenidade da
filmografia de Jarmusch está justamente nessa estranha e encantadora combinação
entre o banal e o misterioso.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
sexta-feira, abril 28, 2017
quinta-feira, abril 27, 2017
Joaquim, de Marcelo Gomes **1/2
A sequência de abertura de “Joaquim” (2017) entrega logo de
cara aqueles que são os principais problemas do filme do diretor Marcelo Gomes:
um roteiro repleto de excessos textuais e pouco sutil que atravanca a
narrativa. Em termos de teoria do que era para ser a sua concepção
estética-temática, a produção era até bem promissora – sob uma perspectiva
naturalista e vigorosa, seria recriada a história do herói nacional Tiradentes
antes da sua definitiva tomada de consciência sócio-política em relação às
mazelas existenciais do Brasil colônia. Em certas sequências, pode-se até
perceber que tais intenções conseguem ser colocadas em prática, principalmente
pela encenação por vezes de forte dinâmica, pela ótima direção de arte e pela
intensidade da atuação de Júlio Machado no papel do protagonista. Ocorre,
entretanto, que Gomes permite que paire por diversos momentos no filme uma
certa atmosfera solene e artificial, como se “Joaquim” tivesse um caráter
institucional destinado a exibição em escolas e afins, tamanha a prolixidade
desnecessária de alguns diálogos e a caracterização caricata de algumas
situações da trama. O subtexto é jogado na cara do espectador sem muita
cerimônia, quando o mais acertado seria valorizar o aspecto imagético para
realçar a visão de mundo da trama. Ou seja, chega a parecer em algumas
sequências que se está assistindo a alguma minissérie de fundo histórico da
Globo. Tais equívocos da produção chegam a ser surpreendentes, pois Gomes já
tinha mostrado em trabalhos anteriores um domínio de linguagem cinematográfica
baseada em fascinantes nuances, vide filmes memoráveis como “Cinema, aspirinas
e urubus” (2004), “Viajo porque preciso, volto porque te amo” (2009) e “Era uma
vez eu, Verônica” (2012).
terça-feira, abril 25, 2017
As falsas confidências, de Luc Bondy **
Adaptação para o cinema de uma peça teatral, “As falsas
confidências” (2016) não resolve de maneira satisfatória a conexão entre os
dois meios de expressão artística. As intenções estéticas do diretor Luc Bondy
até são ousadas, principalmente por apostar numa encenação e numa atmosfera que
busca um caráter mais libertário e que se afaste do mero realismo, dando para a
produção um interessante elemento fora do tempo e do espaço. Além disso, o
elenco conta com algumas atuações expressivas e carismáticas. Falta para o
filme, entretanto, um maior rigor na sua condução narrativa no sentido de
conseguir gerar alguma tensão e interesse para o espectador. Os fatos se
sucedem na tela dentro de uma síntese formal-temática amorfa e banal, impressão
essa acentuada por um roteiro excessivamente frívolo e previsível.
segunda-feira, abril 24, 2017
John From, de João Nicolau ***1/2
A analogia pode soar forçada e simplista para alguns, mas a
produção portuguesa “John From” (2015) faz pensar na hipótese bastante
imaginária de que alguma produção clássica oitentista dirigida por John Hughes fosse
refilmada sob a batuta surrealista de Luis Buñuel. Em um primeiro momento, a
concepção estética-temática dessa produção do cineasta João Nicolau se vincula
a um estilo realista, ao retratar o cotidiano da adolescente Rita (Júlia Palha)
marcado pelos dilemas e delícias inerentes à sua idade. A partir do momento em
que a personagem se descobre apaixonada pelo vizinho mais velho, de forma
progressiva elementos de cinema fantástico vão se inserindo de maneira sutil na
narrativa. É como se o imaginário da garota se tornasse a principal perspectiva
daquilo ao que o espectador assiste. Nesse sentido, signos do mundo
contemporâneo se misturam a referências passadistas com uma naturalidade
insólita e encantadora, além de nuances do roteiro que poderiam soar
estapafúrdias acabam adquirindo uma estranha e coerente lógica. Nesse sentido, a
obsessão com fatos históricos e povos exóticos que permeiam a trama aludem ao
conturbado passado colonialista de Portugal. Dentro desse particular ideário
artístico-existencial, é um dado fundamental de “John From” a ambígua encenação
encadeada por Nicolau, que se vale de uma fascinante síntese entre o libertário
e o solene.
quinta-feira, abril 20, 2017
Martírio, de Vincent Carelli ****
Se em “Corumbiara” (2009), obra anterior do diretor Vincent
Carelli, a narrativa convencional e apenas correta não acompanhava a
contundência de sua temática, em “Martírio” (2016) esse descompasso desaparece,
tendo por resultado uma obra inquietante e muito bem resolvida em termos
estéticos e existenciais. E isso fica evidente logo nas primeiras sequências do
filme, em que o brilhante jogo de edição contrapõe o discurso preconceituoso de
políticos e da mídia oficial em relação à questão indígena com a realidade
desoladora dos nativos. Tal engenhoso recurso narrativo também serve para
estabelecer como o trabalho de Carelli transcende a simples reportagem informativa,
deixando claro que o gênero do documentário cinematográfico tem como uma de
suas funções principais oferecer uma perspectiva humanista e artística que vai
além da abordagem jornalística “imparcial” da grande imprensa. Para o diretor,
não basta que a sua obra se limite a uma descrição cronológica e minuciosa de
fatos – na verdade, o que ele se propõe é jogar o espectador dentro de uma
perturbadora jornada histórica e sensorial sobre a trajetória de sistemática
dizimação física e cultural de povos indígenas no Brasil a partir do relato das
experiências traumáticas sofridas pelo grupo Guarani Kaiowá. Para isso, Carelli
constrói uma narrativa que se vale de recursos variados (relato histórico,
registro etnográfico, depoimentos, filmagens amadoras, farto material de
arquivo audiovisual, perspectiva emocional e intimista) e lhes dá uma unidade
artística admirável e também desconcertante, pois se há momentos de intensa
melancolia, principalmente nas entrevistas com os indígenas a descreverem seus
calvários, e até mesmo assustadores (com destaque para as falas hipócritas de
latifundiários e políticos), há também sequências em “Martírio” que trazem um
comovente encanto pelo dimensão cultural de rezas e danças nos rituais
indígenas.
quarta-feira, abril 19, 2017
Virei um gato, de Barry Sonnelfeld **
O cineasta norte-americano Barry Sonnelfed nunca chegou a
ser propriamente um diretor de traço autoral próprio, mas dentro do seu padrão
convencional e comercial foi responsável por algumas produções memoráveis e
divertidas como “A família Addams 2” (1993) e “O nome do jogo” (1995). Dessa
forma, “Virei um gato” (2016) traz uma certa impressão de decepção. Não que a
sua premissa de roteiro seja especialmente promissora ou original, mas o
tratamento formal e a narrativa concebidos por Sonnelfed são tão genéricos e destituídos
de vigor criativo que mais faz pensar de que se trata de uma obra de um
tarefeiro qualquer de Hollywood do que o trabalho de um profissional veterano e
com algum talento. Por vezes, dá até para dar umas risadas com a cretinice de
algumas situações da trama, mas a impressão final é de que se trata de muito
pouco para alguém como Sonnelfeld.
terça-feira, abril 18, 2017
Cães selvagens, de Paul Schrader ***1/2
Não é muito frequente que um filme de Paul Schrader apareça
nos cinemas brasileiros. E dá para entender o motivo – sua carreira como
diretor é errática e imprevisível, ainda que tenha uma quantidade considerável
de obras memoráveis. “Cães selvagens” (2016) é uma demonstração enfática do
caráter conturbado da arte de Schrader. Ao invés das rigorosas narrativas
bressorianas de “O gigolô americano” (1980) e “O acompanhante” (2007), nessa
produção mais recente o cineasta envereda por uma concepção mais anárquica e
delirante, como se quisesse evocar uma longa trip alucinada movida a cocaína e
crack. Ainda assim, seu direcionamento estético nunca perde a coerência existencial
e um forte traço autoral – ainda que se abuse de truques gráficos e de uma
direção de fotografia de cores estouradas, além de uma barulhenta trilha sonora
baseada em temas rock e eletrônico, paira sobre a narrativa e a atmosfera do
filme um certo classicismo que impede que tudo caia na mera estilização
estéril. Mesmo o tom over das atuações do elenco, com destaque para a
interpretação extraordinária de Willem Dafoe, consegue se enquadrar de maneira
precisa dentro do conceito ambíguo da obra. As escolhas formais de Schrader
acentuam com sensibilidade e humor o tom misto de melancolia e sordidez do
roteiro, que faz um retrato vigoroso e irônico da rotina de marginais e
perdedores. Nesse sentido, as sequências finais de “Cães selvagens” são
exemplares na forma com que sintetizam o particular ideário-artístico e temático
arquitetado pelo diretor e também por evidenciarem a moral difusa e hipócrita do
“american way of life”.
segunda-feira, abril 17, 2017
Souvenir, de Bavo Defume ***
Por debaixo das aparentes frivolidades e breguices de “Souvenir”
(2016) há um interessante exercício de estética e ironia por parte do diretor
Bavo Defume. A produção recicla clichês de melodramas e musicais, com direito a
citações e referências diretas a clássicos do gênero, e os recria num contexto
artístico de certa originalidade. Direção de arte e fotografia evocam uma
insólita atmosfera entre o realista e o camp, fazendo lembrar algumas obras
marcantes de Jacques Demy, principalmente “Os guarda-chuvas do amor” (1964). A
própria atuação de Isabelle Huppert no papel da protagonista Liliane,
alternando sobriedade e exagero nas doses certas, se mostra em sintonia com
essa proposta estética e formal de Defume.
quinta-feira, abril 13, 2017
Paraíso, de Andrei Konchalovsky **1/2
O diretor russo Andrei Konchalovsky tem uma filmografia
marcada por um rigoroso academicismo narrativo. Dentro dessa opção artística,
sua carreira não apresenta grandes arroubos criativos, ainda que seja um
competente artesão cinematográfico e por vezes tenha apresentado algumas obras
memoráveis como “Os amantes de Maria” (1984) e “Gente diferente” (1987). Sua
produção mais recente, “Paraíso” (2016), versa sobre a perseguição a judeus na
2ª Guerra Mundial e, em um primeiro momento, até sugere algumas ousadias
estéticas, principalmente nas sequências em que evoca técnicas documentais,
onde os principais personagens falam diretamente com a câmera. Tais recursos,
entretanto, aos poucos vão se esvaindo na sua capacidade de gerar efetiva
tensão dramática e mesmo uma convincente densidade psicológica para os
personagens. Ainda que detalhes formais como fotografia e direção de arte revelem
forte cuidado em suas respectivas concepções, narrativa e atmosfera se mostram
excessivamente solenes e previsíveis, fazendo com que “Paraíso” se configure
como um trabalho derivativo dentro do gênero ao qual pertence.
quarta-feira, abril 12, 2017
O ornitólogo, de João Pedro Rodrigues ***1/2
Uma intrigante simbologia permeia toda a narrativa de “O
ornitólogo” (2016). Nas sequências iniciais, em que o protagonista Fernando (Paul
Hamy) estabelece uma rotina de silenciosa e rigorosa observação de pássaros no
meio de uma floresta, o diretor João Pedro Rodrigues utiliza um registro
audiovisual típico do estilo naturalista – fotografia e edição evocam trejeitos
de cinema documental, encenação remete à escola realista, há um certo
distanciamento emocional na abordagem temática, trilha sonora musicada praticamente
ausente. Tais opções de linguagem cinematográfica revelam sutilmente um
universo marcado pelo predomínio da ciência e da razão. Quando Fernando
acidentalmente se perde na floresta, ambientação e atmosfera existencial da
obra se transformam radicalmente, como se o personagem tivesse ultrapassado
para uma dimensão paralela. Nesse novo contexto de teor fantástico e delirante,
surgem figuras e situações estranhas e perturbadoras, como as amigas chinesas
adeptas de um catolicismo obtuso, um grupo de nativos que celebram rituais
pagãos, amazonas fora do tempo e do espaço, um pastor de ovelhas mudo e gay,
até mesmo um pombo branco que parece configurar uma espécie de espírito da
floresta. A conexão entre “O ornitólogo” e os conflitos e dilemas do mundo
contemporâneo é claro, ainda que tal ligação se estabeleça por caminhos
insólitos – quanto mais Fernando, agnóstico e homossexual, se embrenha na
floresta, mais ele se confronta com o atavismo e a tradição opressores de um
lugar marcado pelo misticismo obscurantista. Ao avançar por trilhas e matos,
sua individualidade e sua psique vão se dissolvendo aos poucos num assustador
processo de “sublimação”. Ou seja, a metáfora exata a retratar a retomada de
uma sufocante religiosidade no mundo contemporâneo. Nesse sentido, “O
ornitólogo” se irmana com outra extraordinária obra de temática semelhante, “A
bruxa” (2015), em que truques e efeitos habituais do gênero horror são
transformados em valiosos recursos na composição de narrativas de forte caráter
libertário.
terça-feira, abril 11, 2017
O mundo fora do lugar, de Margarethe Von Trotta **1/2
Há pelo menos um mérito considerável por parte da diretora alemã
Margarethe Von Trotta na realização de “O mundo fora do lugar” (2015) – diante de
uma trama genérica típica do gênero melodrama, a abordagem da cineasta é
marcada pela sobriedade emocional e pela elegância formal. Mas também nada que
vá além disso, pois apesar da narrativa se desenvolver de maneira agradável e
sem maiores sobressaltos, falta algum elemento artístico que dê alguma
transcendência à obra. Ou seja, é um filme fácil de ver, mas também fácil de
esquecer. E o que no caso de Von Trotta acaba sendo algo frustrante,
principalmente se lembrarmos da contundência estética e temática de sua
produção anterior, “Hannah Arendt” (2012), um dos melhores trabalhos
cinematográficos recentes a discorrer sobre a 2ª Guerra Mundial.
segunda-feira, abril 10, 2017
Para sempre, de Juan Zapata 1/2 (meia estrela)
Ainda que marcada por uma narrativa irregular, “Simone”
(2013) demonstrava evolução dentro da filmografia do diretor Juan Zapata.
Podia-se perceber na produção mencionada algumas inquietações estéticas e mesmo
uma certa ambiguidade na abordagem emocional de sua temática. Em “Para sempre”
(2016), o cineasta parece voltar à estaca zero ao se limitar a revolver de
maneira nada inspirada clichês narrativos de melodrama barato. Nos dez minutos
iniciais do filme ele já delimita, e esgota, todo o seu arcabouço formal e
textual – em uma trama envolvendo perda e trauma, haverá uma variação nos
planos temporais (presente e passado) a indicar um processo de aceitação e
aprendizado de uma viúva (Daniela Escobar). Nada contra a opção por usar elementos
convencionais na narrativa. O grande problema é que truques e recursos estéticos
são jogados na tela de maneira mecânica e sem criatividade. E a noção de construção
de uma jornada existencial é bastante rasteira, pois “Para sempre” emula uma
síntese de literatura de autoajuda e ficção romântica banal. Pode-se até perceber
uma intenção de sofisticação visual, principalmente pela trama se situar em
algumas fotogênicas cidades europeias. Acaba ficando só na tentativa mesmo,
pois o registro de Zapata nesses cenários fica limitado a uma concepção
imagética de cartão postal. Esse aspecto, inclusive, é emblemático do grande
equívoco artístico-existencial de “Para sempre”, em que Zapata parece se
deslumbrar com alguns signos de pretensos requinte e profundidade psicológica e
se adequa a um comodismo de retratar de forma asséptica e sem vigor a “alma” de
uma típica dondoca pequeno-burguesa, impressão reforçada pela interpretação
canastrona de Daniela Escobar. Nesse sentido, a obra de Zapata parece uma
derivação da franquia “50 tons de cinza” no uso de um formalismo “publicitário”
e na caracterização sentimental estilo “romances Sabrina” atualizado.
terça-feira, abril 04, 2017
Fátima, de Philippe Faucon ***
A concepção narrativa e a temática de “Fátima” (2015) remetem
o filme para um viés melodramático. Em termos formais a obra é convencional e a
sua trama é uma conjunção de elementos marcados pela previsibilidade. Ainda
assim, a produção francesa dirigida por Philippe Faucon consegue ser envolvente
e plena de tensão dramática devido à sua abordagem emocional sóbria, ao rigor
da encenação e a um roteiro que sabe ressaltar com sensibilidade e lucidez
perturbadoras as complexidades e sutilezas da questão da vida dos imigrantes na
França. O filme dispensa maniqueísmos e soluções fáceis – assim como disseca de
maneira crítica a exploração e o preconceito sofridos por imigrantes e
descendentes em seu dia-a-dia, também mostra um olhar de contestação sobre os valores
culturais ditos “tradicionais” propagados pela religião muçulmana que na
prática tem uma função primordial de opressão moral e de incentivar o
obscurantismo. Nesse sentido, o subtexto da obra tem um caráter até libertário
ao sugerir uma possibilidade de mudança e transcendência pela educação e pela
arte. A contundência desse conteúdo é amplificada pelas interpretações
vigorosas do elenco, principalmente das garotas que atuam nos papéis das irmãs
Nesrine e Souad.
segunda-feira, abril 03, 2017
Era o Hotel Cambridge, de Eliana Caffé ***
É claro que um filme como “Era o hotel Cambridge” (2016)
ganha uma ressonância diferenciada diante de uma conjuntura sócio-política
nacional e mundial tão conturbada quanto a do presente, principalmente devido à
sua temática. Dentro da questão da invasão e ocupação de imóveis abandonados
por movimentos sociais, a diretora Eliana Caffé também não se furta em deixar
claro de que lado está. O que se tem aqui é um cinema político e mesmo
panfletário em sua essência. A cineasta, entretanto, não se prescinde de
desenvolver com sensibilidade o aspecto intimista da trama do filme. Nesse
viés, a encenação e a interação entre personagens fictícios e pessoas “reais”
são repletas de fortes nuances dramáticas e mesmo um insólito aspecto de
comicidade, o que amplia de maneira profunda e comovente o teor humanista da
produção. “Era o Hotel Cambridge” também se mostra capaz em ousar dentro da sua
parte estética. Nesse último caso, há uma simbiose contundente entre conteúdo
de discurso e a síntese narrativa-formal da obra – a opção de fazer um
entrelaçamento entre ficção e documentário configura um método artístico ousado
e de caráter guerrilheiro, o que se pode verificar nas melhores sequências do
filme que são aquelas que mostram o processo de ocupação de um imóvel e o
conflito no final contra a polícia numa ação de reintegração de posse. Mais importante
para a diretora do que fechar pontas do roteiro ou deixar “redonda” a narrativa
é evidenciar uma atmosfera de angústia e incerteza diante de uma sociedade que
legitima a opressão e o preconceito contra os deserdados e os “diferentes”.
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