segunda-feira, agosto 31, 2015

Filme sobre um Bom Fim, de Boca Migotto ***

O título desse documentário dirigido por Boca Migotto é uma bela sacada conceitual e sintetiza com perfeição o próprio espírito da obra. “Filme sobre um Bom Fim” (2015) não se refere apenas a uma localidade física, mas também, e principalmente, a uma gama de sensações e desejos que brotaram e se expandiram de forma intensa nos anos 80. Ao longo da narrativa, há um número considerável de entrevistados, cuja maioria dos depoimentos se mostra relevante por diversos fatores. Por vezes há uma unidade nessa percepção coletiva sobre o significado do que ocorreu naquele período. Em outros momentos, entretanto, as declarações se mostram contraditórias, oscilando entre a profundidade histórica e o anedótico, a amargura pragmática e a pura louvação idealista. Esse desencontro de ideias e opiniões valida ainda mais o trabalho de Migotto, dando-lhe uma maior dimensão humana e densidade existencial, retirando o filme daquilo poderia parecer um vídeo institucional. Pode-se sentir raiva dos monólogos exagerados e narcisistas de Peninha Bueno, admirar a aguda visão sociológica de Juremir Machado Silva ou simpatizar com os causos narrados pelos donos dos bares Ocidente e Escaler. O mais interessante, contudo, é o quadro geral formado por essas diferentes perspectivas que parece configurar uma verdadeira dimensão paralela que se formou dentro de uma área específica de Porto Alegre.


As escolhas formais para contar essa saga cultural podem parecer conservadoras e convencionais, obedecendo àquela tradicional equação de entrevistas e farto material de arquivo, mas a opção declarada de Migotto era evidenciar a história daquele período pela ótica daqueles que ajudaram a construir aquele cenário artístico e comportamental. Dentro dessa concepção, “Filme sobre um Bom Fim” funciona de forma eficaz como um retrato fiel e vigoroso de uma geração.

sexta-feira, agosto 28, 2015

Homem irracional, de Woody Allen **

Há um momento em “Homem irracional” (2015) que o protagonista Abe Lucas (Joaquim Phoenix) diz que não precisa de uma musa para resolver suas crises existenciais e criativas. No caso de Woody Allen, entretanto, parece que a presença de uma nova musa inspiradora é urgente. Assim como em “Magia ao luar” (2014), o cineasta norte-americano tem como personagem principal feminina Emma Stone, uma atriz bonita e simpática, mas incapaz de dar consistência dramática para papéis de maior densidade. Isso parece contaminar até o próprio senso estético e temático de Allen. O filme evoca elementos formais e de conteúdo que já haviam sido utilizados em outras produções do diretor, o que por si só não chega a ser um demérito, pois a filmografia de Allen se baseia numa espécie de aprimoramento e retomadas de ideias e obsessões dele. O que incomoda em “Homem irracional” é que essa tradicional reciclagem artística ora é feita no piloto automático ora é realizada de forma piorada e mais simplória. Nesse sentido, talvez a comparação que mais vem à cabeça é com a obra-prima “Match Point” (2005). Os dilemas básicos dos roteiros são os mesmos, principalmente na questão que diz respeito ao sentimento de culpa perante um assassinato cometido. Há até mesmo as referências à “Crime e castigo” de Dostoievski. Mas tudo aquilo que era sutil, sofisticado e sexy em “Match Point” nessa obra mais recente é pueril, óbvio e por vezes até mesmo grosseiro. Faz até pensar que seja uma brincadeira de Allen tentando mostrar ao espectador como seria refilmar “Match Point” de uma forma em que tudo saísse errado: não há uma tensão dramática que seja envolvente nas cenas mais cruciais do filme, o subtexto é jogado na cara da plateia de forma ostensiva nos diálogos, o elenco anestesiado em atuações apáticas (mesmo o geralmente intenso Phoenix parece um tanto perdido em cena). É claro que no final das contas não dá para dizer que “Homem irracional” seja exatamente um filme ruim. Dá para distrair nossos sentidos com a fotografia bonita e agradável e com a trilha sonora repleta de extraordinários temas de jazz. Em se tratando de artista com o currículo de Allen, contudo, acaba sendo muito pouco e, por isso, bem frustrante.

quinta-feira, agosto 27, 2015

Quero matar meu chefe 2, de Sean Anders *

No gênero comédia, a fronteira entre o que pode ser efetivamente muito engraçado e aquilo que é aborrecido aparenta ser bastante tênue. Afinal, por exemplo, o que pode explicar que o primeiro “Quero matar meu chefe” (2009) tenha sido uma produção divertida e essa sua continuação lançada em 2014 ser tão sem graça e picareta? Na realidade, a explicação acaba não sendo tão difícil assim. No primeiro filme havia um certo frescor por alguns motivos bem definidos: a ideia principal do roteiro era boa e bem explorada em suas possibilidades criativas, as piadas tinham sua empatia, o elenco trazia algumas atuações carismáticas. É claro que estava longe de ser uma obra-prima, mas sua realização arejada a tornava uma obra memorável. A única coisa que transparece nesse segundo filme é que os seus produtores estavam mais a fim de ganhar uma grana certa com a continuação de um sucesso do que apresentar algo significativo que justificasse uma segunda parte. Basicamente, repete-se sem inspiração alguma as situações bases do primeiro filme. Essa indolência transparece até nas interpretações apáticas do elenco. Como resultado final, uma comédia que mais induz ao sono do que ao riso e que se torna ainda mais decepcionante quando se vê que o diretor é Sean Anders, o mesmo do ótimo “Sex Drive – Rumo ao sexo” (2008).

quarta-feira, agosto 26, 2015

Na próxima, acerto no coração, de Cédric Anger ***

Filmes sobre psicopatas que cometem assassinatos em série não são propriamente uma novidade. O que chama a atenção em “Na próxima, acerto no coração” (2014) é a sóbria abordagem que o diretor Cédric Anger oferece para contar a história real de um desiquilibrado policial que se dedicava assassinar mulheres nas suas horas vagas em uma cidadezinha do interior da França nos anos 70. Assim, a tensão dramática não está concentrada de forma principal nas violentas mortes das vítimas e na investigação para que se descubra a identidade do matador. O foco da narrativa está no cotidiano do protagonista Franck Neuhart (Guillaume Canet), mostrando tanto os fatos banais do seu dia-a-dia quanto a sua rotina estranha de auto-fragelamentos, treinamentos de condicionamento físico e caçadas de suas “presas”. O formalismo adotado por Anger é marcado por um tom seco e sem grandes ousadias estéticas, mas que se mostra em adequada sintonia com a proposta de uma narrativa naturalista que dispensa exageros e maniqueísmos. O distanciamento emocional do registro da produção acentua ainda mais essa propensão para uma estética realista. Apesar desse viés áspero da temática e do tratamento formal, o filme tem uma dimensão humanista forte ao mostrar as complexas nuances do comportamento errático do personagem principal. Os significados de suas atitudes tanto carregam no simbolismo (Neuhart se vê como um guerreiro com uma missão que beira o divino) quanto na psicologia de almanaque (sua agressividade contra mulheres parece esconder uma homossexualidade reprimida). É nessa ambiguidade perturbadora que se encontra o principal ponto forte de “Na próxima, acerto no coração” – a capacidade de fazer com que o espectador sinta até compaixão por Neuhart mesmo diante de sua demência assassina.

terça-feira, agosto 25, 2015

Segunda chance, de Susanne Bier **


A diretora dinamarquesa Susanne Bier começou sua trajetória cinematográfica bastante ligada ao radical movimento Dogma 95. Com o tempo, foi cada vez mais se afastando das concepções radicais de Lars Von Trier e assemelhados e se vinculando a uma vertente convencional de melodramas. Não à toa, acabou tendo um de seus filmes (“Brother”) adaptado para uma versão norte-americana, bem como ganhou Oscar e Globo de Ouro por “Um mundo melhor” (2010) e dirigiu algumas produções nos Estados Unidos. “Segunda chance” (2014) é um exemplar sintomático dessa tendência para a acessibilidade comercial e artística de Bier. O filme até dá uma enganada em algumas sequências pela pegada forte de violência e sujeira gráficas. As cenas de fúria junkie do nojento Tristan (Nikolaj Lie Kaas), de loucura alucinada da histérica Anna (Maria Bonnevie) e de um bebê sujo de merda e urina dentro de um armário imundo revelam um talento inato de Bier para tomadas impactantes, fazendo imaginar o que ela poderia render num autêntico filme de horror. Essas contundentes qualidades estéticas da produção, entretanto, acabam atenuadas por uma narrativa banal e primária. O roteiro busca estabelecer uma relação de contradição moral entre determinadas situações, mas acaba caindo num moralismo óbvio e ingênuo em tais truques. De certa forma, dá para dizer que essa abordagem é coerente com as obras anteriores da cineasta, fazendo supor que Bier parece ser fascinada com dilemas católicos como culpa e expiação. Tais conceitos se manifestam, todavia, de forma bastante obtusa. Aquilo que era para ser perturbador e inquietante acaba se resumindo numa equação simplória: novelão global exagerado estilo Manoel Carlos mais suspense picareta e risível.

segunda-feira, agosto 24, 2015

Real beleza, de Jorge Furtado ***




Parece que a pausa para realizar o documentário político “Mercado de notícias” (2014) fez bem para a criatividade de Jorge Furtado. Em “Real beleza” (2015), sua volta aos longas de ficção, o diretor dá a impressão de ter reciclado suas concepções artísticas, voltando com uma obra mais sóbria e refinadas em termos formais e temáticos. Ao invés das tramas pueris e do formalismo indulgente de filmes como “Meu tio matou um cara” (2004) e “Saneamento básico” (2007), predomina um roteiro repleto de sutilezas dramáticas e irônicas permeado por um acabamento estético mais elaborado. Logo na sequência de abertura dá para perceber essa renovação bem vinda no cinema de Furtado, em que os movimentos e enquadramentos de câmera, aliados a uma encenação meticulosa, constroem uma latente atmosfera de tensão. Essa orientação artística prevalece em boa parte de “Real beleza”. O tema “beleza” impregna o próprio conceito existencial do filme, mas de forma que não resvala no óbvio. Há cenas que ressaltam a plasticidade tanto das mulheres e garotas que aparecem às dezenas na produção quanto das paisagens verdejantes da serra gaúcha que servem como cenário. Sempre há a contraposição, entretanto, da reflexão crítica sobre a perenidade da beleza e da exposição dos sentimentos turbulentos dos personagens. É de se ressaltar ainda que essa é obra de Furtado que se dá melhor em termos de interpretações: as atuações de Adriana Esteves e Vladimir Brichta combinam de maneira notável discrição e intensidade, enquanto Francisco Cuoco surpreende ao sair do seu habitual registro canastrão.

É claro que “Real beleza” está longe da perfeição. As excessivas referências literárias, por exemplo, trancam um pouco a desenvoltura da narrativa, soando forçadas e um tanto narcisistas. No final das contas, entretanto, também revelam que as ambições artísticas de Furtado são altas – é melhor pecar pela ousadia do que pelo comodismo. Junto a “Mercado de notícia”, essa produção mais recente do cineasta deixa evidente seu amadurecimento artístico, confirmando até algumas das boas promessas que se insinuavam no vigoroso e irregular “Houve uma vez dois verões” (2002), e que pareciam ter ficado pelo caminho em algumas de suas produções posteriores.

sexta-feira, agosto 21, 2015

Mãe e filho, de Alexander Sokurov ***1/2


Poucos diretores em atividade têm uma assinatura artística tão característica quanto a do cineasta russo Alexander Sokurov. Seu estilo é ostensivamente identificável logo nas primeiras imagens de qualquer de seus filmes. Aquilo que alguns podem identificar como mera repetição, na realidade está muito mais para uma depuração extrema na concepção e realização de suas produções. Nesse contexto, “Mãe e filho” (1997) traz no seu bojo elementos formais e temáticos que se cristalizariam de forma ainda mais intensa em “A arca russa” (2002) e “Fausto” (2011). A premissa do roteiro é simples na sua aparência: a relação de um filho com a sua mãe moribunda tendo como cenário o interior campestre da Rússia. Esse intimismo bucólico, entretanto, vai ganhando uma dimensão mais ampla com o desenvolvimento da narrativa. Sokurov constrói uma obra de ambientação rarefeita e de texto elíptico – a estética realista vai se dissolvendo em nome de uma linguagem anti-naturalista. Nesse contexto, a obra se converte num misto de poesia e simbolismo intrincado. Os diálogos são evasivos e carregados de metáforas, enquanto a direção de fotografia converte suas imagens em quadros vivos de iluminação e enquadramentos expressivos e delirantes. O ritmo da narrativa é lento, como se evocasse um pesadelo melancólico em câmera lenta. Talvez aí resida a síntese criativa de “Mãe e filho”: a junção entre a beleza plástica de seu formalismo e a sua perturbada atmosfera de um sonho ruim, resultando em uma obra que se cola no imaginário do espectador de forma contundente.

quinta-feira, agosto 20, 2015

O imigrante russo, de Stanislav Güntner *


O que motiva um profissional da área de distribuição de filmes no Brasil achar que uma produção como “O imigrante russo” (2012) valha a pena ser lançado nas salas nacionais? É de se questionar isso ao se assistir à obra em questão e constatar uma ruindade cinematográfica monumental. Tudo depõe contra o filme: roteiro mal ajambrado que mistura de maneira grosseira uma love story chumbrega com trama policial genérica e estúpida, personagens incrivelmente burros, direção que beira o amador, ausência de cenas que se destaquem por algum truque estético criativo, elenco de interpretações inexpressivas, falta de alguma efetiva tensão dramática, trilha sonora melosa e inconveniente. Por vezes, cai até naquela infalível equação: de tão ruim, chega a ser engraçado. No mais, ainda que a concorrência seja forte, temos aí um forte concorrente a pior filme lançado nos cinemas de Porto Alegre em 2015.

quarta-feira, agosto 19, 2015

Missão impossível - Nação secreta, de Christopher McQuarrie ***1/2


O novo capítulo das aventuras do agente Ethan Hunt (Tom Cruise) em termos de estrutura de narrativa pouco difere dos filmes anteriores da série. Há uma grande conspiração internacional que motiva Hunt e seus parceiros a viajar ao redor do mundo, com direito a pontuais viradas na trama, surpreendentes ou não, além de três ou quatro apoteóticas sequências de ação. O que faz a diferença em cada episódio da franquia é o tipo de abordagem formal que o diretor responsável resolve adotar para direcionar a narrativa. Em “Missão impossível: Nação secreta” (2015), o cineasta Christopher McQuarrie surpreende nas suas escolhas estéticas e temáticas ao procurar um viés mais sutil. É claro que estão lá as cenas de ação baseadas em encenação e efeitos apoteóticos (a abertura com o protagonista se segurando na porta de um avião em pleno vôo pelo lado de fora é um primor de exagero que beira o delirante). Predomina, entretanto, uma atmosfera mais cool nos desdobramentos da trama ao invés do tom frenético constante que é primordial na maioria das produções contemporâneas do gênero aventura. É exemplar desse direcionamento toda a extraordinária sequência na ópera “Turandot” de Puccini num teatro vienense, com uma encenação elegante e precisa na sua combinação de violência, ação e música. O truque de usar a evolução de uma música clássica numa apresentação para marcar a ascensão e ápice de uma seqüência de ação não é exatamente uma novidade (conforme aquela passagem antológica de “O homem que sabia demais” de Hitchcock), mas McQuarrie conduz tudo com uma elegância formal tão notável que tal recurso acaba se tornando até mesmo surpreendente. Ainda que o seu terço final apele para convencionalismos e simplificações e no conjunto geral não tenha a mesma excelência artística do primeiro “Missão Impossível” (1996) dirigido pelo mestre Brian De Palma, “Nação secreta” se coloca entre as melhores produções da série e um dos grandes destaques no gênero aventura de 2015 ao lado de “Mad Max: A estrada da fúria” e “Hacker”.

terça-feira, agosto 18, 2015

Dromedário no asfalto, de Gilson Vargas **


As praias do Rio Grande do Sul não são conhecidas exatamente por sua beleza. Ao contrário dos cenários paradisíacos dos litorais do Nordeste e de Santa Catarina, nos balneários gaúchos predominam aquele visual melancólico e bruto de areia dura, mar marrom e ausência de alguma vegetação vistosa. No inverno, tais praias ficam com uma atmosfera ainda mais sombria e desoladora. Ainda sim, dá para dizer que há algo de belo nessa feiúra. O próprio cinema gaúcho conseguiu captar um pouco da “magia” dessa atmosfera litorânea peculiar em filmes como “Houve uma vez dois verões” (2002) e “A última estrada da praia” (2011). Nesse sentido, dá para dizer que “Dromedário no asfalto” (2014) dá uma continuidade a essa tradição. Há sequências muito marcantes a retratar a beira-mar cinzenta e balneários isolados, com um registro audiovisual que configura uma ambientação soturna, por vezes até sugerindo algo como um dimensão paralela. Se o filme de Gilson Vargas se resumisse a ser um documentário de caráter sensorial sobre praias gaúchas mais obscuras, certamente poderia até ser uma obra mais cativante. Ocorre que o gênero da produção é outra e nessa vertente escolhida, o drama ficcional, a narrativa desanda. Dá para entender que a concepção temática e formal de “Dromedário no asfalto” traga elementos pessoais muito fortes de seus realizadores, mas o jeito como isso chega nas telas acaba sendo enfadonho. A narrativa com voz over do protagonista Pedro (Marcos Contreras) despeja um texto auto-indulgente e pedante, estando mais para má literatura do que para um recurso cinematográfico eficaz. Além disso, o roteiro se prende a um modelo de road movie óbvio que nunca realmente consegue decolar – nas andanças de Pedro vão aparecendo personagens que pouco acrescentam, funcionando mais como um escape burocrático para a trama. Vargas parece se conformar com truques narrativos manjados (afinal, quem ainda aguenta ver um filme com cenas de alguém olhando para o mar sugerindo reflexão e tristeza?). Ok, pode ser que haja espectador que se identifique com as angústias existenciais do protagonista e talvez assim “Dromedário no asfalto” cumpra alguma função artística, mas o fato é que as escolhas estéticas da obra a levam àquele limbo das produções que ficaram no meio do caminho.

segunda-feira, agosto 17, 2015

Campo de jogo, de Eryk Rocha ***1/2


Analisando o conjunto da obra do cineasta brasileiro Eryk Rocha, fica evidente um padrão autoral bastante característico, principalmente no campo documental. A sua prática de cinema verdade não se vincula a um caráter informativo e didático. Quando expõe a realidade daquilo que é filmado e editado, o diretor se mostra mais interessado no efeito sensorial de seu registro. É claro que no meio disso tudo há uma “mensagem”, mas ela sempre vem carregada de simbolismos e mistério. “Campo de jogo” (2014) é um exemplar contundente desse modus operandi de Rocha. A princípio, o documentário em questão teria como temática a exposição minuciosa dos lances cruciais de uma decisão de campeonato de várzea de uma comunidade de periferia da cidade do Rio de Janeiro, mostrando também os bastidores e reações das torcidas. As concepções artísticas adotadas por Rocha, entretanto, vão mais além. A produção é impregnada de truques formais engenhosos que dão à narrativa um estranho tom misto de épico e ironia. Na realidade, a estética adotada por Rocha faz até mesmo questionar os limites daquilo que é o mero registro da “verdade”, pois em várias cenas dá para notar que o diretor se utiliza de uma encenação particular, com direito a flashbacks e efeitos técnicos notáveis – nesse último caso, é antológica a seqüência que “explica” o motivo da bronca de jogadores com uma decisão do juiz. Diante de tais escolhas artísticas, não há como não fazer uma conexão entre “Campo de jogo” com alguns dos principais trabalhos de Glauber Rocha: se as narrativas delirantes de “Deus e o diabo na terra do sol” (1964) e “A idade da terra” (1980) serviam como alegorias da cultura sincrética e contraditória do Brasil, o filme de Eryk usa o futebol de várzea como um retrato de boa parte da essência social e comportamental daquele povo brasileiro que vive num tênue limite entre a humildade e a marginalidade.

sexta-feira, agosto 14, 2015

Samba, de Eric Toledano e Olivier Nakache *


Por mais que “Intocáveis” (2011), filme anterior de grande sucesso comercial dos diretores franceses Eric Toledano e Olivier Nakache, estivesse marcado por convencionalismos emocionais e formais, havia uma certa elegância e vigor no filmar que faziam com que a obra não caísse numa modorra criativa. A narrativa conseguia se equilibrar em um tênue limite entre o melodrama desbragado e a combinação bem amarrada entre dramaticidade e bom humor. Em “Samba” (2014), trabalho mais recente dos cineastas mencionados, o aludido equilíbrio artístico vai para o espaço de forma irremediável. Por mais que a trama evoque temas pertinentes da atualidade como a questão dos imigrantes na França e a depressão e solidão na sociedade ocidental contemporânea, tudo acaba soando forçado e descompassado no filme, fruto das escolhas artísticas infelizes de seus realizadores. Conflitos e dilemas são expostos de forma esquemática e sem sutileza, com o roteiro sempre apontando para soluções simplórias e banais. Falta densidade dramática para as situações limites da trama, assim como as caracterizações dos personagens são destituídas de vida e substância. Aliás, a falta de consistência da direção de Toledano e Nakache contamina as atuações do elenco – bons atores como Tahar Rahim e Charlotte Gainsbourg estão opacos em cena. Na verdade, os equívocos de “Samba” são o reflexo perfeito da crise artística que assola boa parte das produções francesas nos últimos anos, em que em nome de uma maior acessibilidade junto ao grande público se acaba sacrificando noções importantes como profundidade existencial e inquietações estéticas.

quinta-feira, agosto 13, 2015

A Estrada 47, de Vicente Ferraz **


Sob uma perspectiva histórica, “A Estrada 47” (2013) significa um avanço considerável dentro do cinema brasileiro – trata-se de uma produção nacional que envereda para o gênero do “filme de guerra” e faz isso dentro de uma infraestrutura respeitável, contando com locações internacionais e atores estrangeiros, bom nível nas trucagens e uma narrativa razoável em termos de ritmo e tensão. Ou seja, no mínimo dá para dizer que se equivale com a média do que se faz na maioria das obras norte-americanas atuais nesse tipo de produções. Aquele cara, por exemplo, que adora ver nas telas aquelas patriotadas dos Estados Unidos em batalhas bélicas pode encarar na boa uma sessão com o filme dirigido por Vicente Ferraz. É de se considerar ainda que é o primeiro trabalho cinematográfico de efetiva repercussão que aborda a participação do Brasil na 2ª Guerra Mundial. A má notícia, entretanto, é que “A Estrada 47” não vai muito mais além do que o competente. Os elementos de encenação são dispostos de forma burocrática e pouco imaginativa, aliados a um roteiro que simplifica a caracterização dos personagens em clichês e estereótipos enfadonhos. Os dilemas e conflitos da trama até podem gerar uma certa expectativa para a plateia, mas são dispostos em cena de forma apática. Além disso, há alguns equívocos narrativos comprometedores, principalmente no que diz respeito à chatíssima e pouco sutil narração literária e empostada de Guimarães (Daniel de Oliveira). Apesar de tais reveses, “A estrada 47” sugere um caminho novo a ser percorrido dentro do cinema nacional popular, fugindo daquele padrão de besteirol medíocre da Globo Filmes.

quarta-feira, agosto 12, 2015

Quarteto Fantástico, de Josh Trank *1/2



Todas as divergências criativas entre o diretor Josh Trank e produtores em relação à realização de “Quarteto Fantástico” (2015) que têm aparecido na mídia em função do fracasso comercial do filme se refletem na própria obra. Do jeito que as coisas ficaram, é evidente uma falta de rumo artístico no filme. É como se o desejo de Trank em reformular radicalmente os clássicos personagens da Marvel se confrontasse com o tradicionalismo daqueles que queriam apenas uma divertida aventura escapista. Assim, fica comprometida a narrativa, que acaba carecendo de vigor e identidade. Cabe ressaltar que as mudanças promovidas pelo cineasta em relação às origens do supergrupo não se configuram como uma grande heresia que comprometesse a essência dos personagens. Em termos de comparação, é como se essa versão cinematográfica atual fosse o equivalente do exemplar “ultimate” do quarteto nos quadrinhos, enquanto aqueles trabalhos lançados em 2005 e 2007 se referissem aos heróis originalmente criados nos 60. Por esse viés, o conceito de atualização de Trank é até interessante no sentido de deixar os protagonistas e o contexto que os envolvem em sintonia com os dias correntes. O problema é que essa promessa de renovação só fica na intenção. Faltam cenas de ação mais convincentes e capazes de entusiasmar, além de tensão dramática naquelas cenas que seriam as mais cruciais. O roteiro monta uma trama aparentemente mais complexa, mas as soluções são apressadas e óbvias. Aliada a um elenco de interpretações caricatas e pouco carismáticas, o desastre é quase completo (dá para salvar algumas boas trucagens digitais). E a frustração é ainda maior quando se pensa que o nome de Josh Trank acabava atraindo boas expectativas, pois o cineasta havia apresentado uma boa mão para o gênero de aventura de super-heróis no ótimo “Poder sem limites” (2012).

terça-feira, agosto 11, 2015

Caçando vagalumes, de Roberto Flores Prieto **


Há um tipo de filme que tem se mostrado bem recorrente no cinema latino-americano nos últimos anos – os melodramas em que um personagem taciturno e solitário acaba conhecendo alguma pessoa (namorada, amiga, filha, etc) que quebra sua rotina e o obriga a encarar a vida de forma mais humana e positiva. Tais produções geralmente se mostram áridas em suas concepções estéticas e bem previsíveis no desenrolar de suas respectivas tramas. Dentro de tal formatação, dá para lembrar logo de cara de obras como “Whisky” (2004), “O segredo dos seus olhos” (2010), “Um conto chinês” (2011). Em determinados casos tais trabalhos são modorrentos, em outros até são simpáticos, mas quase sempre são perfeitamente esquecíveis. O colombiano “Caçando vagalumes” (2013) se enquadra sem tirar nem por nessa linhagem de filmes. Por vezes, ele até dá uma enganada, principalmente nas seqüências iniciais, com uma narrativa minimalista e uma direção de fotografia que valoriza com sensibilidade a beleza rústica de paisagens campestres. Quando a menina Valéria (Valentina Abril) entra em cena, entretanto, a narrativa envereda de forma implacável por um lugar comum tedioso. Falta vida e criatividade para a direção de Roberto Flores Prieto, cujo estilo se limita a acomodar clichês formais e temáticos de forma pouco imaginativa. Dependendo do contexto, pode acontecer da produção ganhar alguns prêmios em alguma edição de curadoria pouco inspirada de um festival qualquer (como efetivamente aconteceu em Gramado), mas para efeitos de se grudar no imaginário do espectador, certamente o destino de “Caçando vagalumes” é o limbo do esquecimento das obras anódinas.

segunda-feira, agosto 10, 2015

Sobrenatural: A origem, de Leigh Whanell *


Há obras que conseguem serem emblemáticas das orientações estéticas de uma época, tanto podendo simbolizar aspectos positivos de determinadas tendências artísticas quanto o lado podre de outras correntes. Nesse sentido, “Sobrenatural: A origem” (2015) representa o segundo caso: é um filme que é um exemplar expressivo da abordagem genérica e medíocre que assola a grande maioria das produções de horror contemporâneas de grandes estúdios. A produção dirigida por Leigh Whanell adota uma formatação previsível e careta, feita especialmente para não chocar o público médio e não muito exigente que costuma ser adepto dessa linhagem de filmes. Isso pode ser constatado perfeitamente ao se observar a progressão do roteiro: menina procura contato com a mãe recém falecida, acaba atraindo um espírito maléfico que a assombra e possui e recebe ajuda de uma sensitiva boazinha que exorciza o espectro demoníaco. Mais importante que criar uma efetiva e perturbadora atmosfera de tensão é reforçar a importância dos laços familiares e de que o amor vence tudo. O formalismo asséptico da direção de Whanell é o complemento óbvio para esse direcionamento açucarado. Convenhamos – isso não é um filme de terror, mas uma obra de caráter espírita com alguns momentos de sustos chochos. Se você, caro leitor, se satisfaz com isso, pode ver “Sobrenatural: A origem” que a diversão é garantida. Mas se o seu caso é querer assistir a algum filme de terror recente mais consistente e assustador, veja correndo “O segredo da cabana” (2011) ou “México Bárbaro” (2014).

sexta-feira, agosto 07, 2015

O gorila, de José Eduardo Belmonte ***


O diretor José Eduardo Belmonte é o responsável por duas obras marcantes do cinema brasileiro desse século, “A concepção” (2005) e “Se nada mais der certo” (2008), produções essas que retratam uma espécie de mal estar da classe média contemporânea perante uma realidade complexa e instável. Tais obras refletiam também as obsessões comportamentais, culturais e até mesmo religiosas de Belmonte, reforçando um forte traço autoral na sua cinematografia. “Alemão” (2013) foi um filme que se desviou desse padrão mais pessoal de realização, com o diretor enveredando pelo gênero policial com um viés melodramático, tendo por resultado final um trabalho derivativo. “O gorila” (2011) é um exemplar das concepções mais particulares de Belmonte filmar. Há um certo abuso de clichês sentimentais e estéticos – o uso ostensivo de música clássica (com destaque para o “Adagietto” de Gustav Mahler, remetendo para a obra-prima “Morte em Veneza), sequências delirantes de iluminação estourada, psicologismos de almanaque. Fica evidente também, entretanto, que Belmonte consegue construir algumas sequências marcantes em termos de tensão e atmosfera, graças a um roteiro repleto de situações e diálogos bem construídos (a cena em que o protagonista Afrânio fica cercado por evangélicos é antológica pelo seu teor inconformista e raivoso), além de um ótimo trabalho de caracterização de personagens, com destaque para as atuações oscilando entre o carismático e o assustador de Otávio Muller e Milhem Cortaz. No mais, o diretor mostra ainda que continua a ser um cronista cinematográfico pertinente dos desajustados e perturbados do Brasil atual.

quinta-feira, agosto 06, 2015

Nós somos as melhores!, de Lukas Moodysson ***1/2


A temática da produção sueca “Nós somos as melhores!” está relacionada ao universo juvenil, mas a sua abordagem artística a distancia dos clichês pueris que predominam nos recentes filmes destinados ao público adolescente. Pelo contrário – a visão do diretor Lukas Moodysson é universal no seu alcance e contundente na sua concepção. O contexto temporal da trama é bem definido: o início dos anos 80 numa cidadezinha sueca modorrenta. A partir disso, Moodysson consegue um trabalho notável em termos de caracterização de personagens e de situações. O trio de garotas adolescentes que formam uma banda punk apresenta atuações intensas e convincentes por parte de suas intérpretes, não caindo em estereótipos fáceis. São personagens críveis e humanas, com os dilemas típicos da sua idade sendo dissecados com contundência e sensibilidade, além de um bem vindo toque de humor. A encenação conduzida por Moodysson é vivaz e madura, recebendo um complemento natural com a estética crua e naturalista da obra. É de se considerar também que o lado musical e comportamental da história revela considerável conhecimento de causa por parte do cineasta: as discussões sobre bandas de punk rock, as cenas de composição e ensaios de canção e o conflito ideológico e social entra a banda das garotas e um grupo de hard rock farofa e machista são elementos culturais que não servem apenas como pano de fundo, mas também como detalhes fundamentais que complementam a compreensão existencial dos conflitos da trama. Diante de tal direcionamento, “Nós somos as melhores!” acaba sendo equivalente fílmico de uma áspera e sincera canção de punk rock.

quarta-feira, agosto 05, 2015

Adeus à linguagem, de Jean-Luc Godard ****


Talvez a melhor forma para tentar entender “Adeus à linguagem” (2014) é procurar situá-lo dentro da presente conjuntura cultural, assim como enveredar para o território das especulações, no sentido de buscar uma ideia aproximada do que passa pela cabeça do cineasta Jean-Luc Godard. Como uma forma de ordenar conceitos e percepções que tenho sobre o filme em questão, tamanha a profusão de excertos textuais e imagéticos que se expandem durante a exibição da produção, considero mais apropriado fazer uma breve descrição do contexto temporal em que assisto à obra. O filme estreou aqui em Porto Alegre no mesmo dia em que outras produções francesas também entraram em cartaz. Vendo os trailers ou lendo as sinopses, há a impressão de se tratar de comédias ligeiras e superficiais, algo até remetendo a uma abordagem que a Globo Filmes tem adotado para o gênero em questão. Na própria sessão de “Adeus à linguagem” há um trailer de uma dessas produções. A impressão que se tem é que a linguagem cinematográfica dominante entrou em um beco sem saída estético e temático, cuja maior ambição é simplesmente entreter seu espectador com uma historinha engraçadinha ou edificante “bem contada”. “Adeus à linguagem” acaba soando como um contundente grito de revolta com esse status quo. Godard despeja sem cerimônia sobre a mente de seu espectador uma torrente de citações, referências e sensações que evidenciam suas obsessões com literatura, filosofia, política, história e cinema. Na superfície, tudo pode parecer fragmentado, mas a verdade é que para o diretor um conceito como unidade soa um tanto restritivo. Seu cinema é livre de amarras de continuidade, eixo, coerência realista. Uma personagem toca a tecla de um piano e sai um som de orquestra – a beleza e poesia do cinema estão no seu sensorialismo e não na sua coerência e verossimilhança. A despedida para Godard em relação à linguagem faz supor o seu cansaço em relação a regras de narrativa que no final das contas pouco significam diante das possibilidades criativas que encenação e edição podem sugerir. Você não é obrigado a entender tudo aquilo que é registrado visualmente para poder se encantar com o poder de uma imagem em movimento. Nesse sentido, “Adeus à linguagem” é uma radical e sincera declaração de amor ao cinema por parte de um de seus mais inquietos artistas.

terça-feira, agosto 04, 2015

Hamlet, de Cristiano Burlan ***


A formatação narrativa de “Hamlet” (2014) faz lembrar o extraordinário “César deve morrer” (2012). Mas enquanto o filme dos irmãos Taviani se concentrava na recriação dramática da encenação por presidiários de outra célebre peça shakesperiana, “Júlio Cesar”, a produção dirigida pelo brasileiro Cristiano Burlan traz uma abordagem mais intrincada. Apesar de apresentar fortes influências de cinema documental, gênero no qual Burlan se iniciou, a obra é ficcional na sua concepção artística. Num primeiro momento, parece que o foco principal seria o registro dos ensaios de mais uma versão para o grande clássico de Shakespeare. Aos poucos, entretanto, há uma expansão daquilo que é filmado. Os atores começam a discutir e recriar diálogos, os textos são passados fora do âmbito do teatro, há estranhas passagens marcadas por um tom onírico e delirante, elementos culturais contemporâneos e regionais são incorporados com naturalidade à adaptação. É claro que Burlan está longe de ter a mesma precisão e sensibilidade narrativas dos irmãos Taviani. Ainda assim, seu “Hamlet” é inquietante na sua visão artística, buscando possibilidades criativas insólitas a partir de um dos mais recorrentes textos literários de todos os tempos.

segunda-feira, agosto 03, 2015

Jornada ao Oeste, de Tsai Ming-Liang ****

O que torna o cinema uma mídia cultural de linguagem própria? Sua construção narrativa para contar uma história? A montagem? Um filme como “Jornada ao Oeste” (2013) parece contestar tudo isso, mas também não oferece uma resposta pronta para qualquer questionamento. O diretor chinês Tsai Ming-Liang exaspera o uso de alguns recursos e os leva a um limite existencial e artístico que beira o perturbador (se bem que para alguns pode ser simplesmente tedioso). A obra em questão exige do seu espectador um certo desprendimento estético e temporal na sua apreciação. Não há propriamente uma história sendo contada e nem grandes truques formais colocados em pauta. O que Ming-Liang faz é um esmiuçar detalhista e lento na sua encenação, procurando captar nuances que tanto podem ser planejadas quanto aleatórias, em meio a expressivos enquadramentos de sua câmera. Esse cinema rarefeito e espartano, aos poucos, gera um efeito sensorial cativante, em que coisas prosaicas e naturais ganham uma notável dimensão artística e humana.